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quinta-feira, abril 13, 2006

QUIXOTE


"(...)

- Não é meu costume – disse dom Quixote – despojar os que venço, nem é uso da cavalaria andante tirar-lhes os cavalos e deixá-los a pé: a não ser que o vencedor tenha perdido na pendência o seu: que em tal caso é lícito tomar o do vencido como despojo de guerra lícita: assim, Sancho, deixa esse cavalo, ou asno, ou o que quiseres que seja, que logo que o seu dono nos veja distanciados, voltará por ele.
- Deus sabe quanto me apetecia levá-lo – replicou Sancho – ou pelo menos trocá-lo por este meu, que não me parece tão bom: na verdade, são tão estritas as leis da cavalaria, pois não se estendem a deixar trocar um asno por outro, mas gostaria de saber se ao menos poderia trocar os arreios.
- Nisso não estou muito certo – respondeu dom Quixote –, e em caso de dúvida, até estar melhor informado, digo-te que os troques, se é que tens necessidade extrema.
- Tão extrema – respondeu Sancho – que não teria mais mister deles se fossem para a minha própria pessoa.
E logo, habilitado com aquela licença, procedeu à mutatio carparum (1) e pôs o jumento às mil maravilhas, deixando-o melhorado em terço e quinto (2).
Feito isto, almoçaram as sobras da boa comida de que tinham despojado a azémola, beberam água do arroio (…); e, depois de matarem o bicho e animarem o espírito, montaram e, sem tomar determinado caminho (por ser muito de cavaleiros andantes não tomar nenhum caminho certo), puseram-se a caminhar para onde a vontade de Rocinante quis, que levava atrás de si a do seu amo, e também a do asno, que sempre o seguia para onde quer que guiasse, em bom amor e companhia. Com tudo isto voltaram ao caminho real, e seguiram por ele ao acaso, sem qualquer outro desígnio.
(...)

N.do Trad.
(1) a mutatio carparum é a cerimónia que se realiza na Cúria Romana no dia de Páscoa e que consiste em os cardeais trocarem as capas de Inverno forradas de peles por outras de forro de seda vermelha.
(2) O terço é a melhora, quota que o pai, no direito sucessório espanhol, pode acrescentar à quota legitimária de um dos filhos; o quinto é a quota de que ou de cujos (autor da herança) pode dispor livremente."

O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha
de Miguel de Cervantes Saavedra (1605)
Tradução de Daniel Augusto Gonçalves (1977)

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