terça-feira, fevereiro 07, 2006
«As encadernações são, para alguns amigos do Livro, um vasto capítulo cheio de delícias.
(…)
Os ricos exemplares doirados por folhas e com elas azaradas; os de seixas finamente trabalhadas com oiro; os que apresentavam os mais belos ferros nos seus marroquins; as encadernações em veludo vermelho, tão nobres, e as de pergaminho, tão severas; as lindas capas de madeira com metais preciosos e outras de segredo, com a sua pequena corrediça onde se escondiam miniaturas profanas e licenciosas, ou relíquias devotas; as inúmeras encadernações de fantasia, feitas com pele de animais diversos –a pantera, o crocodilo, a serpente, o bacalhau e a foca –, tudo foi destruído na catástrofe de 1755.
Não refere a História se, nessa espectaculosa (sic) biblioteca do inteligente rei, havia também, como nalgumas outras, encadernações feitas com pele humana.
Estas fantasias macabras davam um valor especial às obras a que se aplicavam.
Assim era grande a estimação em que o médico inglês Dr. Ashew tinha dois volumes encadernados com a pele duma feiticeira do Yorkshire, Mary Ratman, que fora enforcada pelo crime de assassínio.
Um rico negociante de Cincinnati mandou encadernar a Virgem Sentimental, de Stern, com a pele de uma negra; e com as das costas duma chinesa o livro Tristan Shandy, do mesmo autor.
Goncourt conta no seu jornal que um encadernador do Faubourg St. Honoré era especialista em aproveitar a pele dos seios femininos nos seus trabalhos. E o editor Lireux afirma ter visto um exemplar da Justine, do Marquês de Sade, encadernado em pele de mulher.
O insigne astrónomo Flammarion foi uma vez convidado pela Condessa de Saint Auge, entusiasta do seu talento, para ir passar uns dias no pitoresco castelo que ela habitava no Jura. Parece que o sábio admirou com desvanecimento os ombros decotados da linda condesa...
Pouco depois, morria ela, e o seu médico escrevia a Flammarion dizendo que, para cumprir o desejo da morta, lhe enviava a pele do peito que tanto o encantara na noite da despedida, pedindo-lhe que com ela fizesse encadernar o seu próximo livro.
É assim que, na biblioteca do filósofo, figura ainda hoje a obra Terras do Céu, encadernada com a pele da romântica condessa. E nas folhas azaradas a vermelho, do livro, fez o sábio semear estrelas de oiro, que lhe recordam as noites cintilantes do Jura...
Extravagante idílio!»
CONDE DE SABUGOSA, Neves de Antanho, 2.ª Ed. – Lisboa: Portugal-Brasil, [19--], pp.289-291.
(…)
Os ricos exemplares doirados por folhas e com elas azaradas; os de seixas finamente trabalhadas com oiro; os que apresentavam os mais belos ferros nos seus marroquins; as encadernações em veludo vermelho, tão nobres, e as de pergaminho, tão severas; as lindas capas de madeira com metais preciosos e outras de segredo, com a sua pequena corrediça onde se escondiam miniaturas profanas e licenciosas, ou relíquias devotas; as inúmeras encadernações de fantasia, feitas com pele de animais diversos –a pantera, o crocodilo, a serpente, o bacalhau e a foca –, tudo foi destruído na catástrofe de 1755.
Não refere a História se, nessa espectaculosa (sic) biblioteca do inteligente rei, havia também, como nalgumas outras, encadernações feitas com pele humana.
Estas fantasias macabras davam um valor especial às obras a que se aplicavam.
Assim era grande a estimação em que o médico inglês Dr. Ashew tinha dois volumes encadernados com a pele duma feiticeira do Yorkshire, Mary Ratman, que fora enforcada pelo crime de assassínio.
Um rico negociante de Cincinnati mandou encadernar a Virgem Sentimental, de Stern, com a pele de uma negra; e com as das costas duma chinesa o livro Tristan Shandy, do mesmo autor.
Goncourt conta no seu jornal que um encadernador do Faubourg St. Honoré era especialista em aproveitar a pele dos seios femininos nos seus trabalhos. E o editor Lireux afirma ter visto um exemplar da Justine, do Marquês de Sade, encadernado em pele de mulher.
O insigne astrónomo Flammarion foi uma vez convidado pela Condessa de Saint Auge, entusiasta do seu talento, para ir passar uns dias no pitoresco castelo que ela habitava no Jura. Parece que o sábio admirou com desvanecimento os ombros decotados da linda condesa...
Pouco depois, morria ela, e o seu médico escrevia a Flammarion dizendo que, para cumprir o desejo da morta, lhe enviava a pele do peito que tanto o encantara na noite da despedida, pedindo-lhe que com ela fizesse encadernar o seu próximo livro.
É assim que, na biblioteca do filósofo, figura ainda hoje a obra Terras do Céu, encadernada com a pele da romântica condessa. E nas folhas azaradas a vermelho, do livro, fez o sábio semear estrelas de oiro, que lhe recordam as noites cintilantes do Jura...
Extravagante idílio!»
CONDE DE SABUGOSA, Neves de Antanho, 2.ª Ed. – Lisboa: Portugal-Brasil, [19--], pp.289-291.
Comments:
Muito me contas...
Não sabia destes delírios. Sim senhor. Fizeste-me lembrar O Perfume, que foi das coisas mais soberbas que li até hoje.
Estás macabro, hoje. Gostei. Condiz com as minhas unhas.;)
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Não sabia destes delírios. Sim senhor. Fizeste-me lembrar O Perfume, que foi das coisas mais soberbas que li até hoje.
Estás macabro, hoje. Gostei. Condiz com as minhas unhas.;)